"Não acho que estou sendo psicanalista"
- Laura Miranda M Ramalho
- 28 de fev.
- 3 min de leitura
O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DO ANALISTA A PARTIR DE UM IDEAL CLÍNICO E A OCULTAÇÃO DE PROBLEMAS POLÍTICOS
Eu não sei você, mas ja me coloquei essa questão algumas vezes, e é muito comum que pessoas cheguem a supervisão com essa pergunta: será que estou sendo analista nesse caso? estou sendo psicanalista ou psicólogo? (inclusive como se psicólogo fosse um demérito) , pois bem.
A resposta geral do campo frente a isso é examinar uma intervenção pra posicioná-la dentro ou fora da seara psicanalítica, afinal de contas, só há analista se houver um ato analítico, não é isso que sabemos? isso frequentemente culmina numa exclusão individual daqueles que “não fazem jus” a tal tipo de intervenção: fulano não é psicanalista de verdade, apontam.
O mais interessante é que nos fazemos esse tipo de pergunta justamente quando estamos diante de intervenções mais “amigáveis”, não ríspidas, atos de cuidado e acolhimento, e às vezes até mesmo de educação. Curioso né?
Porém, nessa história há um problema enorme que se acoberta: um problema de ordem política; vem comigo:

A ideia de que só analista a partir de um ato é uma elaboração teórica lacaniana que surge num momento histórico específico: diante dos rompimentos institucionais, Lacan se vê fora das balizas institucionais que pudessem legitimá-lo enquanto analista frente aos outros, e instaura um novo compromisso com uma nova hipótese sobre o seria um analista.
No livro de Gabriel Tupinambá (O desejo de psicanálise) , recorrendo às intervenções de Althusser no momento de saída de Lacan da escola, o autor coloca em questão como a fundamentação sobre o que poderia ser um analista vai se tornando cada vez mais individual (ainda que o analista se autorize por “alguns outros”), pois o critério de legitimidade de um analista se sustenta cada vez mais em uma instância intrapsicanalítica (p. 94), um ponto indiscernível interno ao próprio setting , tratado como dimensão decisiva do procedimento analítico. (Seminário 15)
Enquanto isso, a teoria do passe que poderia fundamentar de maneira enlaçada teoria, clinica e instituição foi considerada um fracasso pelo próprio Lacan. (Tupinambá)
Da teoria sobre o desejo do analista, logo surge a elaboração de Lacan sobre ato e posteriormente sobre discurso, distanciando cada vez mais a premissa do que seria um analista da figura do próprio analista.
E assim o ato analítico se tornou um ideal do que significa pertencer a comunidade analítica - um critério de pertencimento de classe que foi, mais uma vez, deslocado a um ideal clínico.
Althusser inclusive faz questão de marcar que aquilo que a maioria dos psicanalistas interpretavam como ato analítico em relação a saída de Lacan da IPA era, na verdade , um ato político. Sendo assim, não poderia ser uma decisão individual, tal como feita por Lacan, mas pensado e discutido democraticamente por todas as partes interessadas .
O problema disso tudo recai hoje em nosso campo na falta de um ponto comum de reconhecimento da nossa classe. Afinal, “como identificar e agrupar o conjunto daqueles que teriam como única propriedade compartilhada a tarefa de dissolver identificações de grupos? ou seja, psicanalistas?” (Tupinambá) ;
Como nos reconhecemos uns nos outros? Quando temos notícias de alguém que trabalha de forma diferente da nossa, o que fazemos em relação a isso? Tomamos como problema nosso? ou refutamos do campo assumindo que o tal não é psicanalista de verdade?
Como ultrapassar esse ideal clínico como critério para o reconhecimento da nossa classe e resgatar as consequências (que incluem raça e gênero) que se impõe no campo do trabalho aos que se submetem a uma formação analítica?

Se esses assuntos te interessam, acompanhe o desjejum (por este canal que vos chega) , e o instagram @hiatos.e.lacunas , e não perca as próximas novidades porvir, inclusive as atividades presenciais que estão abertas no Rio de Janeiro - março/25
ALTHUSSER, L. “Escritos em psicanálise: Freud e Lacan”
LACAN, J. “O seminario 15, o ato psicanalítico - aula 15.11.67”
TUPINAMBÁ, G. “O desejo de psicanálise - exercícios de pensamento lacaniano”,
ROUDINESCO, E. “Lacan - esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento”
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